UMA JORNADA PERIGOSA


UMA JORNADA PERIGOSA

Lâmpada para os meus pés é tua palavra, e luz para o meu caminho.
Salmos 119:105


Tenho ouvido e lido de alguns cristãos acerca do entendimento que têm mostrado sobre a caminhada com Deus e os processos pelos quais Ele se revela e se comunica conosco. Fundamentalmente, estes irmãos e irmãs acreditam – cada grupo em particular – em quatro caminhos para viver adequadamente o reino de Deus e sua comunhão com Ele: o revelacional, o teológico, o filosófico e o de foro íntimo. Trato superficialmente dos quatro caminhos a seguir.

PRIMEIRO, o revelacional. Os irmãos que advogam este caminho nos informam que Deus se revela para além do texto escrito, pois Ele é antes da Escritura e sua relação com os homens da antiguidade não era pautada em um livro ou livros, e que, consequentemente, os profetas, apóstolos e os homens e mulheres do Novo Testamento não possuíam uma Escritura neotestamentária, mas sim uma revelação de Cristo no texto da Antiga Aliança, portanto, Deus pode muito bem se revelar e nos revelar coisas profundas além do texto, mas sem ferir o texto.

Não sou contrário aos fundamentos dos que pensam assim, porém, tenho que argumentar um pouco mais sobre o tema. Desde o Éden, Deus se revela ao ser humano de maneira clara e inequívoca precisamente por meios de comandos e ordens, que posteriormente foram ordenados em leis, estatutos, normas e mandamentos para que todos seguissem sem que a dúvida pudesse atrapalhar a quem quer que seja. Mesmo os profetas e apóstolos, somados aos irmãos e irmãs do primeiro século, embora de fato não tivessem uma Escritura cristã, os mesmos não podiam livremente falar e proclamar coisas que não tivessem uma fonte escriturística.

Por exemplo, os discursos de Pedro e de Estevão em Atos dos apóstolos estão recheados de textos da Antiga Aliança como fonte de suas argumentações. Mesmo Paulo, pregando aos gregos – ainda que se utilizasse de conhecimentos comuns aos seus ouvintes – ao introduzir os conceitos de Deus, da salvação, do arrependimento, de Cristo e da ressurreição, estava sendo profundamente escriturístico não se apartando do ensino de Jesus e da própria fé cristã revelada no texto que agora possuímos. Portanto, o argumento revelacional não pode ser usado como base para se ir além da Escritura, ainda que possua seus méritos.

SEGUNDO, o teológico. Os proponentes deste ramo do caminho são os que se aprofundam nos corredores claros, iluminados ou sombrios e com parca luz das fontes teológicas mais diversas que se conhece. São os responsáveis por introduzir conhecimentos estranhos ao texto bíblico, utilizando o próprio texto bíblico como pequena referência de suas falas e escritos. Estes queridos se entranham pelos caminhos de assuntos tão divergentes e complexos que a simples fé cristã perde-se em uma multidão de palavras que os antigos homens e mulheres, sacerdotes, reis e profetas do pacto anterior não sabiam, que João Batista e Jesus não falaram, que os apóstolos e profetas do novo pacto jamais pensaram e que nunca passou pela mente dos irmãos e irmãs do primeiro e segundo séculos de nossa era.

É óbvio que eu não desprezo a teologia e o conhecimento que ela produziu ao longo dos séculos – pois também sou teólogo – todavia, o mero conhecimento e saber acadêmicos jamais produzirão o novo nascimento, uma vida cristã afastada do pecado e profundamente comungante com Deus, pois estas essências do Evangelho de Jesus Cristo e outras são fruto de experiência pessoal com a obra redentora dele, com o amor do Pai derramado em Jesus e pela habitação do Espírito Santo no renascido e na renascida. Isto não se dá pela teologia mais bela e correta que tenhamos, mas pela conversão, arrependimento e aceitação de Deus.

Sem um verdadeiro e real, simples e profundo conhecimento das Escrituras, sem que elas sejam nossa fonte de fé e conceitos sobre Deus, o mundo, a luz e trevas, vida e morte e etc., nossa teologia não passa de enfeite de mesa ou estante que usamos para esconder um fato concreto de nossa alma: como Eva, e depois Adão, questionamos e rejeitamos a Palavra de Deus por causa de uma dúvida plausível ou de uma alternativa produzida pela serpente, no intuito de achar que Deus não é quem diz ser e que o que Ele disse pode não ser tão sério ou verdadeiro assim. A nossa teologia, como no caso do Éden, pode substituir o lugar de Deus em nossos corações e mentes. É um caminho florido e bem ornamentado, mas esconde uma flora venenosa.

TERCEIRO, o filosófico. Quero explicar a questão. Como caminho filosófico me refiro aos irmãos e irmãs que fazem de sua vida uma coletânea de frases de efeito e absorvem todo tipo de conhecimento prático ou pragmático que possam utilizar para que vivam de maneira próspera, vitoriosa, sem empecilhos, bem sucedidos e com uma resposta fácil e pronta para qualquer circunstância que lhes aconteça. São especialistas nas redes sociais, não são amantes da leitura densa, são práticos na pesquisa online e sempre têm à mão um aplicativo para facilitar as coisas e “errar” menos.

Também acredito em coisas práticas e pessoalmente sou alguém bem pragmático e perfeccionista em diversas tarefas, porém, a vida é muito mais do que frases de efeito soltas e mais do que conceitos de autoajuda ou de conexões virtuais. Ela (a vida) não se dá bem com nossos planos e sonhos, não aceita respostas prontas e nem se preocupa com nossas filosofias de vida. Ela pode ser gentil ou brutal, dependendo da circunstância. Pode ser amável e violenta, cordial e deselegante, amiga ou inimiga. Mas um fato permanece: a vida se sujeita às Escrituras divinas, à Palavra do Criador, porque ela reconhece a fonte de sua existência e lhe presta reverência.

Quando a Escritura se torna nossa fonte de prática para a vida, com o passar dos dias e anos, a própria vida se ajusta à vontade de Deus. Nada é maior que Deus, por resultado, nada se sustenta ante a Palavra do próprio Criador. Ela nos dá direção certa, nos oferece conselhos corretos, nos dá rota e sinalização interior, nos fortalece o ânimo e recobra as forças quando estas nos faltam. Ela nos dá esperança e nos mostra que, mesmo que a vida nos seja contrária (o que pode acontecer com qualquer um ou uma), há um futuro já escrito e determinado por Deus onde viveremos outro modelo superior de vida. Por isso, filosofias de vida não são o mesmo que a filosofia para a vida da Escritura.

QUARTO, o de foro íntimo ou particular. Sobre este ponto não vou discorrer muito, pois ele é bem simples. Os que caminham a vida cristã com este pensamento são facilmente discerníveis. Eles ou elas não estão em nenhuma comunidade de fé local – ou seja, igreja local -, não se submetem a nenhuma autoridade bíblica, fazem críticas extremas à igreja, dizendo amá-la e sentindo-se parte integrante dela. São especializados em textos da Escritura que subsidiam sua causa, não possuem amor real pelos irmãos mais fracos ou débeis na fé.

Advogam uma interpretação pessoal da Escritura, mesmo se utilizando de mestres teológicos dos mais diversos (e duvidosos). Não há nenhum ambiente eclesiástico que lhes sirva, pois imaginam que receberam um entendimento superior do texto que os demais (que são enganados e idiotizados) não têm. São pastoreados por si mesmos, seu conhecimento teológico aparentemente denso, não passa da velha fórmula dos gnósticos do primeiro e segundo séculos, que afirmavam que seu entendimento era revelado pelo próprio Cristo aos iniciados e que não precisam de uma igreja local (que a chamam de institucionalizada), pois fazem parte da igreja mística de Cristo.

Desconhecedores das Escrituras que são, não compreendem o que defendem nem tampouco o que afirmam com tanta veemência. Faltam-lhes não o conhecimento ou a leitura bíblica, mas a graça e o amor genuíno que brotam de corações cheios do Espírito de vida e paz outorgado por Cristo aos que tiveram o entendimento transformado pelo culto racional e pela oferta de si mesmos como sacrifícios vivos a Deus. Falta-lhes não a teologia, mas a fé que opera pelo amor e incondicionalmente crê e ama os amados por Deus. Falta-lhes a Escritura toda, não apenas uma parte dela, a que lhes convém, para não viverem à parte e isolados do convívio do corpo real de Cristo.

Termino dizendo que estes caminhos, embora tenham fundamentos verdadeiros em muitos casos, não são suficientes ou sustentáveis para se viver a vida cristã genuína que procede da Palavra de Deus. Ir além da Escritura é trilhar por conta própria por lugares onde a luz do farol de Deus não ilumina e onde não se sabe se o solo onde pisa é confiável. Estes caminhos podem ser maravilhosamente perigosos aos seus usuários. Retornemos ao porto seguro, ao farol divino, ao caminho reto e puro ordenados por Deus para dar segurança às nossas almas: a Palavra de Deus, viva e eficaz, reveladora e fundamento sólido, luz e vida, transformadora e santificadora, espiritual e materializada, alimento e instrumento. Ela nos dá um testemunho inquestionável da vontade de Deus para as nossas vidas até o fim dos tempos.

A Ele toda a glória.
Sola Scriptura

Carlos Carvalho, Bp.
Teólogo e Pr. Sênior da Comunidade Batista Bíblica
Escrito em 3 de setembro de 2016

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